ENTREVISTA COM O POETA E ESCRITOR MERITIENSE LASANA LUKATA
Entrevista do poeta e escritor Lasana Lukata concedida ao blog Embaixada Poética.
Lasana Lukata é poeta e escritor. Nasceu em 14/03/1964 na antiga Estrada de Minas, atual Getúlio de Moura; é servidor público da Prefeitura Municipal de São João do Meriti, na função de trabalhador braçal. Participou da Oficina Literária ministrada pelo poeta Ferreira Gullar, em 2001, na Uerj, resultando na Antologia Poética “Próximas Palavras”; cursou Literaturas Portuguesa e Africanas de Língua Portuguesa, UFRJ, autor dos livros Meu Cartão Vermelho & outras crônicas, Multifoco, 2010, Caçada ao Madrastio (crônicas, 2010), Exercício de Garça, Íthacas, 2011 (Poesia); Separação de Sílabas, 2011 (poesia) Virtualbooks. Urdume, multifoco, 2012, Homem ao mar, Livrosilimitados, 2014; Setênfluo, Livrosilimitados, 2014.
Valdemir Costa: Como foi a sua infância?
Lasana Lukata: Muito pobre, mas tinha lá o seu pedaço de paraíso, toda criança tem o seu paraíso... Eu morava num barraco e nos fundos havia um espaço do tamanho de uma quadra de futebol que era lama pura com um vão de janela que dava para o rio e nele pousava a garça, mas eu não imaginava estar diante do material que mais tarde iria trabalhar, não sabia ler, fui aprender de 6 para 7 anos na companhia da madrasta, minha mãe tinha preguiça de me levar à escola, suas amigas passavam lá em casa, eu via seus filhos uniformizados, lembro de uma que falou: é só deixar ele arrumado que eu levo, mas ela resistia; afora isso, gostava de abacates, vivia sobre o pé de abacate, alisava os abacates pensando nos seios de dona Déda, mulher de um espanhol que andava nua no quintal. O muro da casa era muito alto, mas o Edinho arrumou uma escada enorme e subíamos para vela, era linda, tempos depois já uma senhora trabalhando com o marido na casa de antenas no centro da cidade, eu passava lá para comprar pequenas coisas, subterfúgios, ainda guardava um frescor de juventude...
Valdemir Costa: Essa infância aparece nos poemas?
Lasana Lukata: Carlos Drummond de Andrade disse para não fazer versos sobre a infância, mas eu fiz. Creio que ele disse isso para aqueles poemas de infância só com ternurinhas, bem perto de Casimiro de Abreu, meus 8 anos passam longe disso. Eu coloquei nessa infância muita força para que a avania sobressaísse; não como cultura do trauma, longe disso, mas como trabalho poético mesmo, tanto que num dos livros, o Setênfluo, tem lá uma sequência de três poemas com títulos de “damas, jogo e plano de jogo, isto não foi acaso. Sugestivos, não? Por exemplo, o poema “Segredo ao mar” fala do suicídio e num dos versos fala de facada no umbigo. Como nasceu esse verso? Eu era servente de pedreiro lá na Avenida das Américas, havia muitos pedreiros construindo casas perto do antigo supermercado Freeway, uma febre, eu dormia no serviço porque a passagem era cara e não sobraria quase nada no final de semana. Foi numa dessas noites que do alto da casa em construção ouvi uma conversa entre dois pedreiros nordestinos e um dizia: rapai, (em vez de rapaz) dá uma facada no umbigo dele, que se não morrer fica aleijado. Era terrível, mas eu achei aquilo de uma poeticidade tremenda, deslocava, uma facada no umbigo; já tinha ouvido falar de facada na quinta costela entre os militares, facada nas costas, no coração, as mais comuns, mas no umbigo era coisa nova, o umbigo entrava no rol da violência. Eu ri, o pedreiro olhou para cima e me incluiu na conversa: é verdade! Se não morrer, as pernas ficam encolhidinhas! E puxou os dedos para o centro da mão, representando o encolhimento. Era uma boa expressão para dar conta de um sentimento, de uma angústia, claro que na época eu não tinha essa consciência, apenas a novidade da frase. Anotei, guardei, poderia me servir um dia e serviu. Quando o fígado permite, apimento a comida.
Valdemir Costa: Religião?
Lasana Lukata: Não creio no Cristo esquartejado que se vende na televisão, para uns, um curandeiro; para outros, um caçador de espíritos imundos; para outros; o dono do ouro e da prata; outros: caridade... As pessoas fazem críticas ao Tiradentes barbudo assemelhando-o a Cristo, mas essa aproximação é pertinente, simbolicamente esses pastores platônicos não esquartejam Jesus?
Valdemir Costa: Como a poesia chega até você?
Lasana Lukata: Olha, ela chega a pé. Se eu andasse de carro teria perdido muito material. Um dia uma mulher parou na minha frente, sem me deixar passar, tantos homens ali, bem mais interessantes do que eu e ela cismou comigo, levantou a barra do seu vestido longo, estava suada, queria que eu passasse a barra do vestido no seu rosto como um lenço, depois de um tempo, vendo que ela não ia embora, fiz, para me livrar, aí ela se foi cantando e dançando. Às vezes a poesia atravessa no meu caminho, sem me deixar passar, no costume da cabeça baixa dei de cara com um ramo muito reto todo vermelho de buganvílias, na hora veio a epifania: uma espada ensanguentada. Um bibliotecário soube que eu escrevia, então me chamou e me mostrou uma garça pousada no flamboyant do SESC-Meriti e perguntou se eu não arrancaria um poema de uma garça, na hora achei engraçado, eu não era repentista, mas aquela garça me lembrou a casa da minha avó junto ao rio Guandu, no quilometro 40, hoje Seropédica, e a minha casa na Vila Tiradentes onde as garças pousavam e mais, tendo servido à Marinha, a palavra garça tinha atravessado o meu caminho muitas vezes, era um nome familiar, “qual linda garça que aí vai cruzando os mares”, cantei à exaustão na Escola de Aprendizes-Marinheiros do Espírito Santo. O bibliotecário empurrou a mesa e uma cadeira para perto da janela, trancou-me na biblioteca e foi almoçar. Depois comecei a rir, ali, parado, olhando a garça, mas fiquei observando. Os minutos se passando e a folha de papel estava em branco, ia começar do caos de palavras para ver se saía alguma coisa quando começou um vento, era outono e garça deu um passo à frente, mudando de galho, aí vieram os primeiros versos que não sei se foram dados pelos deuses como disse Paul Valéry:
branca, branca, branca
a esperança muda de galho.
Depois desci ao rio e vi que era só uma garça no Rio Meriti-Pavuna, vieram mais duas e passaram a ser três a dormir no flamboyant, foi um guarda de segurança que sabendo que eu escrevia sobre as garças, as notícias correm, mostrou-me uma noite antes da peça de teatro, as três garças no alto da árvore, quando arriei os olhos no rio tive surpresa, vi que estava cheio de garças de outra qualidade. Mais tarde um grande professor Ronaldes de Melo Souza, de literatura brasileira na UFRJ, um culturalista, tendo lido meu primeiro livro de garça, disse que se fosse eu continuaria a escrever sobre as garças, falou três vezes, falou que aquele livro merecia ganhar um prêmio, na terceira vez percebi que falava muito sério embora risse. Aquilo me gerou uma responsabilidade, que eu estava com algo sublime em minhas mãos e precisava cuidar. Ele mesmo indicou um livro de Walter F. Otto que falava de três musas, muito antes das nove musas de Hesíodo, eram Milete, Mneme e Aóide, mandei trazer o livro da Espanha, por encomenda, não tinha aqui, veio de navio, quando chegou ao porto, no alto do navio havia três garças, não era coincidência, ávida estava me dando um recado, fica com as garças, então o número três era simbólico nesses livros assim como o 7.
Mas é necessário dizer que antes, convidado informalmente por um amigo, fui parar numa oficina literária ministrada por Ferreira Gullar, na UERJ, que ao ler o poema das garças disse que era muito bom, mas implicou com uma palavra que lhe transmitia um hermetismo, a palavra “Graveolência”, que significa cheiro, quando ele me perguntou sobre a palavra eu disse que era violência, mas o poeta Sérgio Augusto corrigiu, disse o significado do dicionário, eles não perceberam que por conta de como estava o rio, isso estava claro no poema, a palavra graveolência passava muito perto da junção de duas palavras: graviolência. Grave, violência, foi o que enxerguei quando li esta palavra, olhando o dicionário, tanto que os primeiros versos diziam “vai dar uma da tarde/e o rio não desencarde”. Aqui no Rio ninguém pronuncia graveolência conforme um paulista que pede na padaria um litro de leite, enfatizando o “E”; nós pedimos leiti e não falamos graveolência e sim, graviolência, mas teria que fazer uma ginástica para explicar essa aproximação, então silenciei. Outro poeta, Mariel Reis também viu nas garças bons poemas e me deu uns toques sobre a presença de referencialidades no poema, o que era pertinente, fiz a faina marinheira, deixando só a garça, um poema é um navio em movimento, produz fuligem, é preciso desenfarruscar o céu e o convés. Não é fácil, é pegar o balde e o escovão; com a vassoura afastar as nuvens da frente das estrelas.
Como se pode ver a poesia não tem uma receita, muitas vezes é descoberta. Os ingredientes estão no mundo, cada um faz a sua receita, eu uso trabalho e criatividade, o meu próprio nome literário dá a dica, pois Lasana Lukata significa poeta caçador e a minha caça preferida são as garças, mas há dias em que volto para casa de mãos vazias. Veja-se que limão com couve, laranja com abóbora, abacaxi com hortelã são descobertas muito boas. Na receita de 3 livros meus, Exercício de Garça, Urdume e Setênfluo, a garça hora vem como acompanhamento, ora é prato principal.
Valdemir Costa: Sempre quis ser poeta?
Lasana Lukata: Sim, desde pequeno, mas não sabia como. Existia a paixão pelas palavras, tanto que mais tarde fui orador da turma de 1ª série e depois orador geral do Grupo Escolar, naquele tempo falava-se assim. Quando cheguei à primeira vez no Grupo Escolar Tiradentes e vi o mural cheio de borboletas azuis purpurinadas, as palavras brilhantes e que aquele brilho das palavras era contagioso, ficaram nas pontas dos meus dedos, eu disse ao meu pai: eu quero ficar aqui! Depois de alfabetizado, quando li o poema de Mário Quintana à beira do Rio Guandu, nos fundos da casa da minha avó e depois vi a foto do Drummond, a certeza abria as asas e ficava enorme, do tamanho das garças grandes que pousavam no Guandu. A professora Juciara, na 2ª série, colocou-me para falar versos num palanque da escola, depois tornou-se escola, ao lado de uma menina descendente de índio, Maria de Fátima, linda, eu era o outono, ela a primavera, aí fiz um outono cheio de braços mesmo, doido pela primavera, braços e mais braços... Tiveram que soltar a primavera dos braços do outono. Bem, quanto ao verso do Quintana “igrejinha de uma torre só”, eu descia a Rua José de Carvalho e do lado esquerdo tinha e ainda tem a igreja, o sino, todos os domingos perturbando e aí eu pensava, graças a Deus de ser uma torre só!
Valdemir Costa: Acha que a sua poesia vai ficar?
Lasana Lukata: Sem dúvida, lá no cemitério da Vila Rosali junto comigo.
Valdemir Costa: Seu pai?
Lasana Lukata: Meu pai era analfabeto, filho de mãe judia com índio, quando mudamos para o morro, lembro que por lá passavam vendedores de enciclopédias, meu pai comprava todas para mim. Tentei pegar na mão do meu pai e passar tudo o que aprendia na escola para ele, mas estava bloqueado, meu avô índio bravo não o deixou ir à escola por se o gambirinha, o caçula e a ordem era “puxar cobra pros pés”, trabalhar no roçado, plantar algodão; vi que era verdade com a chegada do meu avô lá em casa, uma tarde os dois conversando, meu pai já na casa dos cinquenta, chorava como um menino de 8 anos, passando em rosto o não ter estudado. Meu avô fez silêncio, cego, lágrimas lhe desciam das órbitas vazias, nunca me esqueci daquela tarde que não atrapalhei.
Valdemir Costa: Escreve sempre?
Lasana Lukata: Sempre que posso, e quando escrevo... Já faltei encontro com namorada por causa da poesia; já cheguei tarde ao trabalho por causa da poesia; já deixei de ganhar dinheiro por causa da poesia, não me arrependo, faria tudo de novo. É uma alegria espiritual terminar um poema, entregá-lo ao mundo. Mas há algo curioso é que se o poema empaca, é indo a pé para o trabalho que apreendo, organizo, soluciono muitas coisas, conforme o corpo esquenta as palavras vão achando um lugar para ficar como as garças se acertando num rio estreito, retilinizado. Nada mais triste do que um rio de margens endurecidas. Mas eu ando muito, gasto sandálias, duas, três por ano, mas vejo muitas garças. Descobri que o rio da minha cidade nunca fica vazio: às 17:40 as garças brancas vão embora, mas no flamboyant já está pousada uma garça-da-noite que é preta e branca, esta começa a emitir sons e chega outro bando e passa a noite no rio, há um revezamento, às seis da manhã chegam as brancas e expulsam as preta e brancas que são menores e recomeça tudo...
Valdemir Costa: E sua formação literária?
Lasana Lukata: Fiz uma especialização em Literaturas Portuguesa e Africanas de Língua Portuguesa na UFRJ, queria entrar em contato com a prosa, ficar perto da fogueira, o que faço agora, ainda que timidamente, tenho um livro de crônicas: Meu Cartão Vermelho & outras crônicas e um livro de contos: Homem ao mar, publicado recentemente. Para mim que vinha das Ciências Jurídicas não foi fácil abandonar um pensamento dominado por silogismos, lógica, raciocínios com início, meio e fim. Embora o advogado seja do mesmo tronco do professor de literatura, do político e do 171 do Código Penal, todos são herdeiros dos Sofistas, o mais perigoso deles todos é o professor de Literatura porque trabalha com todas as cores; o advogado não, trabalha com a versão, mas com a cor da retórica, uma ironia limitada, facilmente derrogáveis. Um pedreiro cobra mais caro para fazer a reforma de uma casa, foi por isso que passei, por uma reforma, e me saiu caro ter que abandonar certos conceitos que já estavam enraizados, dói, daí nascer o verso em um dos meus poemas da garça no livro Setênfluo: “mudar de cor é doloroso”; quando vi que as garças nascem brancas e depois mudam de cor, as que são de cor; vi que a mudança heraclitiana era necessária, mas não é fácil, demanda esforço, abrir de novo o coração. As garças azuis e as garças-da-noite nascem brancas depois passam por um estágio em que elas ficam, salpicadas de manchas de ferrugem, carijós, parecendo enferrujadas mesmo, mas daí brota, por exemplo, um azul, isso é belo, nessa transformação.
Valdemir Costa: Você é de esquerda?
Lasana Lukata: Nem de direita. Nunca pertenci a um partido político, embora servindo à Marinha, tenha sido taxado de comunista, que eu queria mudar a Marinha, só porque o sargento viu um recruta manobrando o cabo na chalana, que era eu. Ocorre que a ação da maresia é devastadora e rápida, sob o meu comando tinha um marinheiro e um recruta o que era pouco, daí eu mesmo também descer na chalana para lixar e pintar, pois na lentidão, quando terminávamos de pintar um bordo o outro já estava enferrujando, bem como esse mundo em que vivemos e falamos tanto na paz, exibindo o bordo pintadinho, mas está cheio de pontos de ferrugem no outro bordo.
Lembro que um sargento, na vinda de um almirante ao curso de cabo, ao pegar um dos meus poemas que eu escrevia de cocaras no banheiro, queria lá saber de almirante, acusou-me de comunista e eu tomei o caderno da mão dele e saí em disparada, arrancando a folha e comendo, ele disse que iria atirar, mas eu continuei, e fui parar na água, fui preso. Lembro dos versos: quero acorrentar a alegria, alforriar a alergia, adeus elegia. O título do poema era esse: Elegia. Não consigo respirar com esses sóis raiados dos cilindros de metal/ não sei se o instrutor diz: olha o bumbo ou olha bomba... Aprendi com Casais Monteiro que a literatura não deve estar a serviço de. Existem carros a serviço da light, dos correios, da CEDAE, mas não há poetas, escritores a servido de alguém. Lembro que fui convidado a escrever crônicas no jornal da cidade e logo me apareceu uma moça da igreja Batista, dizendo que era um espaço ótimo para falar de Jesus, naquela mesma tarde retornando para casa encontrei um amigo taxista envolvido na “política” e que falou, bom espaço para falar do nosso partido, ele ficou sem graça quando lhe disse que não tinha partido. Sei que há escritores a serviço do Rei, na minha cidade foi criado o fantástico cargo de Assessor de Poesia!rsrs. Um ex-vereador um dia se aproximou de mim e disparou: você nunca vai receber nada dessa cidade por causa do jeito que você é. Leram o meu poema da garça e disseram que eu só sabia falar mal da cidade. Ferreira Gullar á época retrucou naquele tonante dele: “mas se o rio está sujo como é que se vai dizer que está limpo!”. Então começaram a divulgar que eu era uma pessoa difícil de lidar, um poeta rebuscado, outros diziam que eu não escrevia nada, que o Ferreira Gullar era uma merda, que meus poemas eram uma merda. Os meus amigos que entraram para o partido receberam comendas, louvações, o diabo-a-quatro. Bem, não sou de esquerda, isto não significa que sou apolítico: sou contra a injustiça.
Valdemir Costa: Sofreu perseguição?
Lasana Lukata: Muita. Quando era transferido aparecia sempre alguém do poder e dizia: Você sabia que isso iria acontecer! Ao que respondia: sim, senhora, está é a sexta vez! Rsrs. Fiquei sem setor para trabalhar porque ninguém me queria e fui parar em lugares afastados do centro, puseram-me para trabalhar de lixeiro, pensavam que humilhava, eu ia feliz com os sacos de lixo nas costas, a poesia é uma anestesia, não me saía da cabeça os versos de Quintana: “esses que aí estão atravancando o meu caminho, passarão, eu passarinho”; um secretário de cultura disse que nada meu ficaria na memória da cidade, entanto, a internet estava esquentando no Brasil, meus poemas foram parar em concursos literários do Paraná, Alagoas, Maranhão, Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Espírito Santo, Itália. Publicado também no Canadá. O de Foz do Iguaçu foi muito providencial, era dezembro e o prefeito disse que os servidores públicos podiam fazer empréstimo no banco Rural para pegar o Décimo - Terceiro que a prefeitura garantiria, mas quando cheguei lá, não tinha garante nenhum, eu é quem assinaria o empréstimo. Fiquei sem o décimo, mas já perto do dia 25 de dezembro chegou um e-mail perguntando se eu não ia querer o dinheiro. Naquela época havia muito medo da internet e o e-mail pedia o número da minha identidade e da conta para fazer um depósito. Eu não lembrava que tinha mandado um texto para lá. No segundo e-mail veio um telefone, aí liguei e eu tinha sido o 2º lugar do concurso de poesias, 700 reais que me vestiu e alimentou no Natal e Ano Novo e ainda comprei um peru de Natal para minha prima. 700 reais em 2002... Aqui está o testemunho de que a poesia salva.
Valdemir Costa: Como você vê a produção poética em São João de Meriti?
Lasana Lukata: já foi mais ativa. Lembro da Neide, antiga bibliotecária do Sesc-Meriti, que desejava a formação de um grupo de escritores que pensasse a literatura, fizesse intercâmbio com outros municípios; de que a poesia fosse adiante, ela abriu espaço para isso e os festivais de poesias que duraram de 1994 a 1998, fortaleceu muito porque durante este tempo, mês de maio, Dia do Trabalhador, era uma celebração matutina, tivemos festivais que ocuparam os 400 lugares, famílias, amigos. Isso incentivou bastante a escrita em São João de Meriti. Atraiu os que já escreviam e nasceram outros experimentando o mundo das palavras. Eu sou fruto dessa época, claro, antes já escrevia, mas agora havia um lugar para mostrar os poemas. Hoje tenho 7 livros publicados, quatro de poesias, lançando dois agora em 2014, poesia e conto. O que incentivou a poesia até foi a iniciativa privada, o poder público local tem lei para publicação de livros, mas não funciona, quando me dirigi ao autor da lei, dizendo que tinha dois livros para publicar a resposta foi: primeiro a gente tem que conversar... Ora, se a lei foi promulgada era só aplicar, colocar em prática, não tinha o que conversar... Como não conversei meus livros não foram publicados. Fiz como Drummond e Bandeira: paguei do meu próprio bolso.
Valdemir Costa: leu Machado de Assis?
Lasana Lukata: sempre. Ainda hoje muitos jovens dizem que Machado não se assumia enquanto "periférico" o que é de uma bobagem, pois Machado de Assis em uma de suas crônicas, tem que ler a obra, diz com todas as letras: fui o primeiro a defender o pobre. A sátira atira e chama a ira. Machado não teria dado dois passos na vida com ela. Destruíram Lima Barreto.
Valdemir Costa: qual poema de sua lavra deixaria para nós?
Lasana Lukata: Epifania
uma fúria suave de buganvílias oferecendo-se às calçadas
por entre as grades das casas pelas tardes de inverno
buganvílias de ramos arqueados e retos
e passa a menina enamorada
e o rapaz lhe põe um cacho no cabelo
passa outra menina e se fotografa ao lado delas
os meninos as levam ao pique-bandeira:
bandeira branca, lilás, salmão, alaranjada...
do alto a garça crepuscular, visão binocular
branca branca branca
da paisagem se alimenta.
tardes de inverno
por que logo hoje para fora das grades
esse único e reto ramo de buganvília vermelha
uma espada ensanguentada
que acabou de sair do meu peito?
MAIS UM POEMA DO POETA LASANA LUKATA.
Recôncavo
Baixada Fluminense,
há quem pense
que aqui o raciocínio diminui.
não é por luz que se ama a Baixada,
nem por peixes que as garças vêm ao rio...
ama-se por insondáveis escuridades marinhas,
de procurar em vão os sentidos.
sequer a dúvida existe,
sequer enxergamos homens como árvores.
tropeçamos em palavras magras, ossos à mostra,
tudo para não amar e amamos,
apesar do granizo e da lama,
onde navios se emparelham,
os homens nunca...
Recôncavo Fluminense
no vai e vem de garças
já se foi mais do que veio...
raciocínio não desnuda a laranja,
fica-se por fora, satelitizando cascas-
os que se afundam na acidez-,
e no entanto nomeiam;
raciocínio não subiria ladeiras,
a da José de Carvalho muitas vezes,
Grupo Escolar Tiradentes...
a Baixada, jardim-
e que não se desviem os cursos dos rios,
vindo a água a folha se levanta.
Recôncavo Fluminense,
há quem pense e condense
mas raciocínio não corta a cabeça da medusa
para libertar as palavras setenta vezes sete.
aqui a poesia entra por três e sai por treze caminhos:
ave na água, peixe no ar;
da laranjeira pendem municípios,
peguei o meu já caindo do pé.
Recôncavo Fluminense,
há quem pense,
mas não vence,
nem convence
que aqui o raciocínio diminui;
e nada influi se teu verso
a minha vida não inclui;
no vai e vem de garças
já se foi mais do que veio
e em pouco raciocínio, nesta tarde,
a Baixada tem muito a ver com este vento
a enlouquecer as garças.
Lasana Lukata